ATENÇÃO

As personagens deste livro, assim como sua trama, são totalmente fictícias e não representam, em absoluto, nenhuma pessoa real.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

CAPÍTULO X

X. Álcool

            Eu estava na quarta cerveja quando Ana chegou. Minha tremedeira havia passado. O álcool havia funcionado como eu queria. Ela me viu, sentou na minha frente, não do meu lado... Isso me fez sentir mal. Pediu um copo ao garçom e colocou a Brahma gelada. Jogou seus cabelos dourados e lisos pra trás e deu um bom gole. Olhou pra mim e me disse que não estava ali pra me julgar, afinal a bebida era o menor dos meus problemas. Obrigado, Ana. No entanto, não concordava com a minha atitude auto-destrutiva. Sim, eu sempre fui assim. Insisto em destruir o que tenho de bom só pra sentir pena de mim mesmo. Ana sabia disso e sempre tentava me provar que eu era melhor do que eu mostrava. Não, Ana. Não se
 iluda. Eu não sou quem você pensa que eu posso ser. Nunca serei. Sou apenas um homem de meia idade jogado às traças, com seus escritos em folhas amarelas e palavras gastas, usadas e que cheiram à álcool e fumo. Não, Ana. Eu sou apenas um falido, um poeta de segunda categoria que queria ser Bukowski, mas não consegue escrever uma linha pútrida sequer.
            — Mentira, Saulo. Tenho certeza de que você tem escrito. Eu percebo em seus olhos, nas suas expressões, que alguma coisa saiu aí de dentro. Eu sei disso porque quando você escreve sua expressão muda. Seu jeito de me olhar muda. Me mostra, Saulo. Me mostra o que você escreveu.
            Enfiei a mão no bolso do meu casaco de couro e puxei a conta de telefone vencida. Enquanto eu bebia as quatro cervejas, eu havia escrito um poema. Antes da Ana chegar eu havia conseguido escrever algo. Não me parecia nada demais, mas depois do Apocalipse Interior eu havia criado mais alguma coisa.
            Ana me tomou a conta de telefone. Leu o poema (4), olhou em meus olhos e pediu ao garçom duas tequilas.
            — Vamos beber, Saulo. Vamos beber direito.

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(4) Álcool


Espasmos.
Falcatruas.
Salários desinflados em dias de verão.
Com chuva.
Macabro. Cinza.

Metade de mim me diz:
- Despreza e vem ser atriz...
A outra me diz que não:
melhor é ser solidão...

O acaso me tira o sono.
A culpa me tira o orgulho
de ser quem não sou...
De ser quem eu sou...
Espero e sou...

Me calo e estou nas nuvens de asteróides
passando sobre a imensidão de cabeças pensantes,
errantes,
meras amantes
daquilo que sou...
daquilo que sou...
Da só solidão...

Espero...
a vida enternece o coração da fera...
Devora-me ou decifra-me, diz ela...
Devoro-te pra decifrar-te,
digo eu, mudamente falante,
errante,
implicante,
replicante,
cansado da turva,
infinita
e estanque

D
O
R

domingo, 10 de julho de 2011

CAPÍTULO IX


IX. Uísque e cerveja

A garrafa de uísque nacional se foi, mas meus pensamentos na Berê não. Sim, eu tomei o que restava na garrafa. Enquanto pensava em toda a minha vida com minha ex, desci quase 700 ml de uísque de segunda. Deu pra fazer um bom estrago.
Dormi até às duas da tarde e achei estranho o telefone não ter tocado. Aí me lembrei que eu não tinha pago a conta. Pelo menos pra isso a falta de grana serviu: me deixou dormir.
Levantei-me com a cabeça mais pesada que uma bigorna. Senti-me, sem exageros, como um judeu macérrimo carregando aquele peso nos ombros sem saber pra quê, sem querer fazer. Minha cabeça doía, mas a ressaca moral me destruía. Eu passara boa parte da madrugada pensando na Berenice, por isso a imagem dela não saía de mim.
Trabalhar... eu precisava trabalhar.
Sem chance...
Eu precisava curar minha ressaca e, acredite, só há uma maneira de se sentir melhor quando se está de ressaca: bebendo mais. Não adianta abacaxi, suco de couve ou de boldo, café forte, três goladas de água de cabeça pra baixo (ou isso é pra soluço?), enfim. Só o álcool poderia me ajudar.
E Berenice? Por onde andaria? Onde dormiu? Ela estava de volta à cidade, mas eu não fazia ideia por onde ela andava. E pra ser sincero, percebi no meio daquela ressaca infernal que já estava mais do que na hora de esquecê-la. Passei mais de um ano esperando-a voltar e quando isso finalmente havia acontecido, senti vontade de ela nunca ter retornado.
Álcool, eu precisava de mais.
Dois engovs antes. Eu sei que não resolveria, mas pelo menos teria uma desculpa pra ir à farmácia.

Ana me recebeu com uma cara de preocupação. Era fácil perceber que o uísque havia me destruído. “Mulher apaixonada e pé na bunda rimam com uísque de segunda”, já dizia uma canção dos Bêbados Habilidosos! E uísque de segunda rima com uma dor de cabeça profunda e dentro da cabeça pensamentos numa vagabunda. Horrível! Não sei o que é pior: essas rimas toscas ou minha situação ali na frente da Ana. Engov, antiácido, analgésico e mais uma caixa do anti-depressivo, Ana, pelo amor que você tenha a Zeus.
— Saulo, não se acabe dessa maneira. Você não merece isso.
— Ah, Ana... não foi culpa minha, o uísque que era vagabundo demais.
— Se você precisar de alguma coisa, não hesite em me procurar, tá? Eu quero seu bem, Saulo. Não se acabe por causa de uma mulher que foi irresponsável com você.
— Eu sei me cuidar... Relaxa.
— Não parece, Saulo... Não parece.
Não sei por que, mas só de ver o rosto da Ana, já me fazia sentir um pouco melhor. Não chegava a curar minha ressaca, longe disso, mas me fazia sentir mais gente. Com ela eu percebia de novo que eu era homem, coisa que eu havia me esquecido desde a partida da Berenice.
— Vou beber pra curar minha ressaca, Ana. Me acompanha?
— Beber? Não é possível...
— Opa... com uma condição... não julgue minha condição de bêbado, pode ser?
— Preciso resolver umas coisas aqui na farmácia, mas daqui a uma hora estarei liberada. Onde te encontro?
— Estarei no Bar do Afonso. Te espero lá.

Peguei um táxi. Sentei numa mesa no fim do bar e pedi uma Brahma. Primeiro gole. Zeus... desceu maravilhosamente bem, esplendidamente bem. Cerveja gelada descendo pela minha garganta é como se fosse, para os cristãos, a chegada de Jesus na Terra. Algo único. Mas pra eles isso não acontece. Pra mim acontece quando eu quiser. É só eu ter pelo menos alguns reais dentro da minha carteira velha de couro. É só ter alguns trocados no bolso da minha calça jeans desbotada. Deus está nas pequenas coisas, já dizia um ditado. Pra mim ele está no gargalo de uma garrafa de cerveja. É tudo o que eu preciso. Uma cerveja gelada num dia gelado. Algo melhor? Bem, só se a cerveja for servida em outro recipiente que não o copo. O corpo de uma mulher por, exemplo. O corpo da Ana. Sim, Ana parecia um copo pra servir cerveja. Berenice um copo pra servir uísque. Mas uísque de segunda. Vagabundo. Daqueles que te dá dor de cabeça. Assim como a que eu estou hoje. De repente por isso estou tomando cerveja. Por isso chamei Ana pra beber comigo. Cerveja, uísque, Ana, Berenice... e eu aqui, sozinho, sentado numa mesa escondida no fundo de um bar. Bebendo... bebendo cerveja.
— Garçom, me traz um uísque de segunda.

PAUSA PARA REFLEXÃO

O Efeito tardio faz esta pausa forçada pra apresentar-lhes um dos trabalhos mais geniais exibidos diretamente pelo youtube. Trata-se do vídeo "Como ser um grande escritor", baseado no texto de Charles Bukowski, que dispensa apresentções. Com direção de Guilherme Petry e interpretação de Vinicius Facco.

Deleitem-se no post abaixo.

Como Ser Um Grande Escritor

quarta-feira, 6 de julho de 2011

CAPÍTULO VIII


VIII. A louca

            Acordei às quatro da manhã. A garrafa de uísque nacional no chão, fechada. Eu não havia bebido uma gota sequer, adormeci antes. Levantei-me, fui até o banheiro. Urinei e não dei descarga como de costume. Voltei à sala, agachei-me, peguei a garrafa de uísque barato, abri e dei uma golada daquelas que anestesiam a laringe. Foda. Liguei a TV num canal de compras e fiquei ali na frente sem prestar atenção. Pensava apenas na Berenice. Na época em que pensei que fôssemos felizes. Na época em que algo fazia sentido. Na única época em que senti um sopro de felicidade na nuca. Enquanto as lembranças dos mortos vinham, eu secava a garrafa. Peguei uns quatro comprimidos de antidepressivo e os engoli com outra boa golada da bebida.
           
Berenice. Eu tinha 22 anos, ela 21. Estava me formando em Publicidade e Marketing, ela em Sociologia. Era fevereiro. Show de uma banda de rock alternativo na praça central da Universidade. Cerveja. Cigarro. Maconha. Berê dançava como se o mundo não existisse. Colocava as duas mãos entre os cabelos cacheados, fechava os olhos e, como se estivesse em transe, sentia a música penetrá-la. Era assim que ela costumava dizer.  Algumas garotas olhavam e riam do jeito que ela dançava. Debochavam, mas ela não se importava. Queria apenas estar ali. Eu, cabeludo, ostentava um cavanhaque meio cafajeste, meio misterioso. Vendo-a dançar senti-me bem. Muito bem. Perguntei a Machado quem era aquela garota. A louca? Não chegue perto, cara. Ela é louca. Sério. Dizem que uma vez ela mordeu o mamilo de um cara na hora da foda e arrancou. Muito doida. Fica longe! Não fiquei longe. Na verdade, isso me fez aproximar mais dela. Eu estava cansado da mesmice das garotas superficiais, eram todas as mesmas, mudavam apenas na aparência, e mesmo assim, isso nem sempre acontecia. Berê era diferente. Misteriosa. Confiante e alheia à opinião fútil e enraizada da maioria. Dancei ao seu lado. Perguntei seu nome. Pra que você quer saber? Isso importa? Não, não importava, mas mesmo assim eu disse: meu nome é Saulo. Publicidade e Marketing. “Então você quer entupir a cabeça das pessoas com frases no imperativo, pra que elas continuem comprando coisas desnecessárias, mas que nunca conseguiriam viver sem?” Filosofia? – arrisquei. Não, Sociologia. E o nome? Pra quê?
            A partir daquele dia sempre nos encontrávamos no refeitório, nas praças ou no estacionamento da Universidade. Ela tinha um Fusca vinho caindo aos pedaços e me dava carona pra casa sempre que possível. Ela ria das coisas que as pessoas me contavam sobre ela. “Quando não seguimos os estereótipos, as pessoas criam histórias pra provar a elas mesmas que os diferentes são loucos, Saulo. Mas a história do mamilo é verdade!” E ria com uma vontade e num volume tão alto que eu nunca soube se ela ria da mentira que estava contando ou porque se lembrou de algo que realmente aconteceu.
            Nosso primeiro beijo foi em outra festa no campus. Ela dançava daquela maneira estranha e me beijava. Dançava com as costas encostadas no meu peito, virava o pescoço e me beijava. Era esplêndido, mágico. É claro que meu estado alcoólico contribuiu pra achar tudo diferente, tudo especial. Mas no fundo foi mesmo. A partir dali, Berê passou a ser pra mim algo que eu não poderia viver sem. Completamente apaixonados, éramos inseparáveis e foram mais de dez meses assim. Até que um dia me percebi instalado no quarto da república que ela morava. Levei pouca coisa: meu violão, discos, livros e roupas. Mudei minha vida sem perceber, eu era agora parte de Berenice e isso me confortava. As coisas faziam sentido, a vida fazia sentido. Eu não precisava pensar se eu tinha alguma missão no mundo. Não precisava pensar qual o motivo da minha existência. Pra quê? Eu tinha a Berenice e isso me bastava. Dependência psicológica e existencial. É quase uma doença, mas eu não queria ser curado, queria estar infectado, mais e mais.
            Assim que nos formamos, comecei a trabalhar numa pequena agência de publicidade de um amigo de um primo. Não ganhava bem, mas quando Berê se formou e passou no concurso da prefeitura, nossa renda era mais do que suficiente pra alugarmos um pequeno apartamento no centro da cidade. Vivíamos bem, afinal nossas necessidades eram poucas. Nossa diversão era fazer amor nas horas livres e, acredite, ela era realmente louca na cama. Nunca chegou a arrancar nenhum dos meus dois mamilos, mas em compensação, fazia e falava coisas que eu nunca poderia imaginar onde ela tinha aprendido. Bebíamos toda noite e quando o uísque a entorpecia, ela adormecia e eu aproveitava para escrever meus contos e meus poemas.
Eu sonhava em ser escritor. Na verdade, esse sempre foi meu sonho. Eu enviava, constante e insistentemente, meus textos pra revistas especializadas em literatura. Um ou outro escrito era publicado. Quase todas as vezes, na sessão de literatura marginal. O que me deixava orgulhoso, afinal eu sempre me esquivei da literatura padronizada, acadêmica e cheia de formas. No entanto, nunca consegui publicar um livro. As editoras recusavam meus escritos e isso me deixava frustrado. Mas eu tinha a Berenice, por isso seguia em frente e não me deixava abalar.
Nossa vida se baseava em álcool, trabalho e sexo. Eu não queria mais nada.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

CAPÍTULO VII


VII. Beirando a loucura


            Comecei a andar e a pensar na minha vida. Tinha 33 anos e não havia conquistado nada do que eu queria.
            Andei sem rumo e, quando percebi, minhas pernas me levaram até ao meu apartamento. Achei estranho, mas não deveria. Esse era o único trajeto que eu fazia todo dia. Casa, escritório. Escritório, casa.
            Subi as escadas com um passo tímido, quase trôpego. Abri a porta e como num ensejo senti o perfume da Berê.
            Com pressa, corri até a cozinha, quartos, banheiro e mesmo sabendo que ela não estava ali, gritei seu nome. Parei. Estranhei minha própria voz e confesso que até agora não sei se gritei Berenice ou Ana... E, como se fosse um sonho que me pega desprevenido, cantei versos estranhos[1] que saíram como vômito seco, mas ensangüentado.
            Sentei no sofá da sala, peguei a garrafa de uísque nacional e dormi.
Dormi como um anjogado aos fúnebres precipícios de Hades.
           











[1] Chorei meu revés

Beirando a loucura,
BerAna a loucura,
Embriaguei-me com seus cabelos
dourados e lisos,
Castanhos e cacheados.

Chorei meu revés
E curei minha fé com lágrima.
Do sal ao doce,
do mel ao fel,
caí em agonia e
sem maestria,
chorei meu revés.

Chorei meu revés...
Beirando a loucura,
BerAna a loucura.

domingo, 3 de julho de 2011

CAPÍTULO VI

VI. Apocalipse interior

            Desci de novo aquelas escadas imundas de um prédio construído na década de sessenta. Ainda havia aquelas luminárias estranhas no teto, a parede recoberta de madeira e um cheiro que me lembrava muito o apartamento de meus avós.
            Parei em frente ao prédio e fiquei, por um tempo, olhando o movimento... Sempre achei estranho parar e ver as pessoas passarem. É como se o mundo girasse e você, só você, fosse a platéia, vendo um espetáculo morto, empoeirado e cheio de histórias repetidas.
            Encostei na quina do portão do prédio, acho que só pra sentir dor na costas, e fechei os olhos pra não ter que ver aquele espetáculo caquético, contado e recontado mais de um milhão de vezes pelo mesmo velho desdentado e cego que só quer te convencer que a vida é feita de decepções e desolações.
            Chorei e parei. Tirei do bolso uma conta de luz. Do outro bolso uma caneta. E, depois de mais de um ano, escrevi um poema. Sem forma, é verdade, mas escrevi. Pútrido, sim, mas escrevi. Com um título piegas, mas escrevi[2].


[2] Apocalipse Interior

Começa com  um estranho tremor nas pálpebras
que se estende ao olho inteiro.
Então a pressão nas retinas
quase esmaga o globo ocular.
Um líquido invisível sobe à garganta
e a náusea toma conta do cérebro.

Depois vem o vômito,
por saber a verdade.
A verdade sempre dói, meu caro
- já dizia meu pop filósofo favorito.
A verdade corrói a essência humana
como a ferrugem ao aço,
como o cupim à madeira de lei.
           
Se fores forte, a raiva tomará conta da náusea
e sentirás vontade de partir o mundo em dois.
Se fores fraco, deitarás em posição fetal e tremerás...

O ideal é usar o vômito como essência para a raiva,
como motivo para a fúria
e então pode-se destruir a verdade,
seja ela quem for.

Destruir a verdade dentro de ti,
Pois fora, amigo, a verdade é imortal.
Ela te enterrará quando morto ou vivo.

Porém, ao menos em ti,
Ela estará oculta, estancada.
Seu cheiro de sangue morto, de menstruação,
Continuará a imperar em  tuas vísceras,
Mas ao menos não te devorará como
O verme que devora o defunto.

Por isso, faça com que teus quatro cavaleiros
Sejam aliados de teu mundo
E não da megera verdade,
Da puta dos homens,
Da virgem dos coitados...

sábado, 2 de julho de 2011

CAPÍTULO V


V. Já vou

            - Aí, vou embora.
            - Como assim, cara? Vamos fechar a parada agora e você vai sumir?
            - Tenho que ir.
            - Cacete. Essa mulher vai acabar te fodendo de vez, meu irmão. Presta atenção, olha seu trabalho, olha sua vida.
            - Vida?
            - É, cara... Sua vida. O que você está fazendo com ela?
            - Ei, o que você está fazendo com a sua? Já percebeu no que você se transformou?
            - Eu?
            - É. Olha pra você. Um porco imundo atrás de uma mesa velha, gritando com um funcionário de merda, esperando um contrato pra vender uma porcaria de porta em porta, gritando com...
            - Ei... cala essa sua boca. Se eu tô nessa merda, pelo menos metade da culpa é sua. E, quer saber? Vai se foder, cara...