X. Álcool
Eu estava na quarta cerveja quando Ana chegou. Minha tremedeira havia passado. O álcool havia funcionado como eu queria. Ela me viu, sentou na minha frente, não do meu lado... Isso me fez sentir mal. Pediu um copo ao garçom e colocou a Brahma gelada. Jogou seus cabelos dourados e lisos pra trás e deu um bom gole. Olhou pra mim e me disse que não estava ali pra me julgar, afinal a bebida era o menor dos meus problemas. Obrigado, Ana. No entanto, não concordava com a minha atitude auto-destrutiva. Sim, eu sempre fui assim. Insisto em destruir o que tenho de bom só pra sentir pena de mim mesmo. Ana sabia disso e sempre tentava me provar que eu era melhor do que eu mostrava. Não, Ana. Não se
iluda. Eu não sou quem você pensa que eu posso ser. Nunca serei. Sou apenas um homem de meia idade jogado às traças, com seus escritos em folhas amarelas e palavras gastas, usadas e que cheiram à álcool e fumo. Não, Ana. Eu sou apenas um falido, um poeta de segunda categoria que queria ser Bukowski, mas não consegue escrever uma linha pútrida sequer.
— Mentira, Saulo. Tenho certeza de que você tem escrito. Eu percebo em seus olhos, nas suas expressões, que alguma coisa saiu aí de dentro. Eu sei disso porque quando você escreve sua expressão muda. Seu jeito de me olhar muda. Me mostra, Saulo. Me mostra o que você escreveu.
Enfiei a mão no bolso do meu casaco de couro e puxei a conta de telefone vencida. Enquanto eu bebia as quatro cervejas, eu havia escrito um poema. Antes da Ana chegar eu havia conseguido escrever algo. Não me parecia nada demais, mas depois do Apocalipse Interior eu havia criado mais alguma coisa.
Ana me tomou a conta de telefone. Leu o poema (4), olhou em meus olhos e pediu ao garçom duas tequilas.
— Vamos beber, Saulo. Vamos beber direito.
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(4) Álcool
Espasmos.
Falcatruas.
Salários desinflados em dias de verão.
Com chuva.
Macabro. Cinza.
Metade de mim me diz:
- Despreza e vem ser atriz...
A outra me diz que não:
melhor é ser solidão...
O acaso me tira o sono.
A culpa me tira o orgulho
de ser quem não sou...
De ser quem eu sou...
Espero e sou...
Me calo e estou nas nuvens de asteróides
passando sobre a imensidão de cabeças pensantes,
errantes,
meras amantes
daquilo que sou...
daquilo que sou...
Da só solidão...
Espero...
a vida enternece o coração da fera...
Devora-me ou decifra-me, diz ela...
Devoro-te pra decifrar-te,
digo eu, mudamente falante,
errante,
implicante,
replicante,
cansado da turva,
infinita
e estanque
D
O
R